terça-feira, 30 de outubro de 2007

Terça Mochilão

Hoje posto um texto excelente, talvez o primeiro realmente acadêmico sobre Relações Internacionais. Só ressalvo que particularmente não concordo com algumas ponderações nele contidas, mas isso é assunto para outro dia. O autor é professor universitário e colaborador do site RelNet, especializado em RI. Divirtam-se.
Da não-opção à opção: coerência e pragmatismo da política externa brasileira.
Leonardo Braga
Voltemos a tratar da política externa do governo Lula. E o façamos pela perspectiva histórica a fim de avaliar sua coerência e a inserção que por ela é proporcionada ao país. Aos Estados faz-se necessário ponderar, quando da elaboração e da implementação de suas respectivas políticas externas, acerca das variáveis domésticas e sistêmicas que ora incentivam, ora restringem as possibilidades de sua realização e, eventualmente, comprometem a boa inserção destes no sistema internacional. Muito, senão tudo, do que os Estados efetivam no conjunto das relações internacionais é resultado da compatibilização entre os desejos internos e as possibilidades externas de os efetivar. Para um país como o Brasil, caracterizadamente uma potência média, esse exercício de ponderação entre o querer fazer e o poder fazer é certamente ainda mais imperativo.Ao longo da história da política externa brasileira, podemos identificar momentos em que a adequação entre o querer e o poder obteve maior sucesso, por certo, pela confluência entre o doméstico e o sistêmico. Outras vezes, verificamos que o sistema internacional exerceu maior peso no processo de elaboração e de implementação de nossa política externa, restringindo nossas possibilidades de inserção no sistema internacional.
É a partir da compreensão de que a variável sistêmica, em vários momentos, pesa mais nas nossas decisões do que as variáveis domésticas, que proponho a discussão acerca da não-opção e da opção na política externa brasileira e avalio a sua condição no governo Lula. Inserida nessa lógica antagônica está a excelência da atividade diplomática brasileira que, especialmente, pelo discurso, concebe, ainda que num ambiente restritivo, em alguns casos, possibilidades factuais e legítimas de inserção autônoma no sistema internacional. É como se pensássemos que a diplomacia brasileira driblasse o adversário mais forte no jogo da política internacional. Como isso se dá? Vejamos alguns exemplos.
Ao recuperarmos a política externa do governo Jânio Quadros/João Goulart, podemos lembrar das restrições sistêmicas da época, especialmente, os acontecimentos cubanos – a Revolução Cubana em 1959, a invasão à Baía dos Porcos em 1961 e a Crise de Mísseis de Cuba em 1962. O referido governo estava embebido numa lógica da guerra fria que alcançou seu auge com a quase III Guerra Mundial, que teria proporções nucleares. O peso sistêmico era muito grande e comprometeu nossas possibilidades maiores de exercício pleno e autônomo de política externa. Mas dessa não-opção é possível pensarmos a opção. Sim, é em 1963 que Araújo Castro, na XVIII Assembléia Geral da ONU, profere o famoso discurso dos 3Ds – Desarmamento, Descolonização e Desenvolvimento – símbolo maior da então Política Externa Independente (PEI). São exatamente as restrições que criam as lacunas de inserção internacional, porque nos possibilitam o exercício discursivo da crítica ao funcionamento das relações internacionais e legitimam, pela nossa história, a postura ora adotada.
Bem, mesmo que seja argumentado que os militares, com a revolução de 1964, acabaram com a PEI e que toda essa postura de desgarramento dos centros de poder e de independência sucumbiu à lógica sistêmica da guerra fria, quando o querer fazer perdeu para o poder fazer, podemos ainda afirmar que a não-opção de 1964 durou muito pouco tempo, porque dentro dela, ou a partir dela, o Brasil encontrou a opção. Como? A chamada Política Externa Interdependente de Castelo Branco rapidamente tenta se valer do ambiente restritivo para a partir dele obter ganhos para o país quando da proposta para que a Força Interamericana de Paz (FIP) criada para restaurar a ordem na República Dominicana em 1965 gozasse de caráter permanente. O objetivo maior não era manter tão somente a hegemonia norte-americana no continente, mas criar com ela uma subhegemonia – uma liderança – brasileira na região. O “americanismo ideológico” teve seu núcleo duro somente entre 1964 e 1965 como retrato da não-opção. Logo após, a não-opção passou a ser a opção. Isso fica cada vez mais claro ao longo do regime militar à medida que o Brasil consegue equilibrar os desejos internos às possibilidades externas até que recupera o exercício da PEI no governo Geisel, permanecendo com ele até o governo Sarney.
Na continuação da análise histórica da política externa brasileira, logo seguida de Sarney, podemos novamente identificar a não-opção como opção, agora não mais pela guerra fria mas pelo pós-guerra fria. O sistema internacional pesa muito no nosso comportamento e os ditames neoliberais proclamados categoricamente no Consenso de Washington orientam a condução da nossa política, especialmente, a interna. Novamente, parece que estamos obedecendo a uma lógica que é maior que aquilo que pensamos em poder fazer – abertura comercial, privatizações, desregulamentação do sistema financeiro etc. Mas é exatamente aí que conseguimos gerar a opção a partir da não-opção, na idéia de que podemos transformar perdas em ganhos!
O governo Collor, ao abrir a economia nacional, apenas favoreceu um processo que estava em curso no sistema internacional e no Brasil. A mundialização do capital e da produção já havia sido iniciada na década de 1970, quando as empresas multinacionais começaram a surgir em maior quantidade e com maior fôlego. As economias européia e japonesa recuperavam-se da II Guerra Mundial e o Brasil acompanhava esse crescimento e globalizava também mantendo além das relações históricas com os EUA e com a Europa relações também com a África, o Oriente Médio, a Ásia e o Leste Europeu.
Aceitar a lógica neoliberal nos anos 1990 significa ponderar sobre a aceitação de algo que nos é maior e aproveitarmo-nos disso; significa transformar a não-opção em opção e significa, por fim, continuar um projeto de inserção internacional de cunho global que se desenvolvia havia, pelo menos, 20 anos. Mesmo a superação do modelo ISI (industrialização por substituição de importações) com o governo Collor se insere nessa lógica de continuação, de busca de ganhos mesmo em condições sistêmicas eventualmente restritivas. Se pensarmos no governo FHC, a lógica se mantém – reafirmamo-nos então como global trader e global player. Assim, a política externa brasileira preserva ao longo do tempo a coerência de sua postura pragmática. A aceitação de ditames sistêmicos não deve ser vista como compromisso ideológico acrítico, mas como atitude pragmática direcionada à busca de ganhos no sistema internacional.
A compreensão da política externa do governo Lula sugere pensar, no entanto, um descompasso desse processo de continuidade, de coerência e de transformação da não-opção em opção. Na verdade, sugere mesmo uma inversão nessa lógica. O Brasil busca da opção a não-opção. Já inserido que está no funcionamento capitalista do sistema internacional desde a década de 1970 e concebido como uma potência média, o Brasil tenta, ainda pela ação discursiva implementar uma política externa agora incoerente do ponto de vista da sua inserção, com base no exercício da afirmação soberana.
Compreendo ser um erro inverter esse processo. O sistema internacional contemporâneo nos é favorável, mas a postura ideológica do atual governo prejudica nossa inserção internacional porque confunde seu cálculo pragmático com um discurso ideológico enviesado. Conseguimos inverter (por incrível que pareça!) a compreensão das nossas possibilidades de atuação no meio internacional. Agora que temos um ambiente favorável, mas o desprezamos para defender algo ou temas que mais engessam que favorecem o exercício de nossa autonomia.
A crítica pelo discurso que antes nos favorecia, hoje nos prejudica, porque não há espaço suficiente para o conteúdo dessa crítica. Não há mais a “irracionalidade da corrida armamentista”, nem “o congelamento do poder mundial”, como se observou nas décadas de 1960 e 1970. Esses eram discursos que nos favoreciam, porque nós éramos parte desses problemas mundiais. Hoje, a crítica aos problemas mundiais nos favorece menos porque fazemos menos parte deles, como o terrorismo, ou porque perdemos legitimidade com a crítica a eles, como a questão da poluição ambiental (O Brasil é um dos grandes poluidores mundiais).
A busca do pragmatismo pela coerência histórica através da crítica pelo discurso perdeu sentido, atualmente. Conseguimos fazer o mais difícil: restringir – não pelo sistema – mas por nós mesmos as nossas possibilidades de inserção internacional mais pragmática e coerente. E pensar que só precisávamos manter o comportamento anterior…

4 comentários:

Tio Vinix disse...

O texto é muito bem embasado, muito bem escrito, bem explicado.
Discordo totalmente

Unknown disse...

Discordo muito também. Falar que não há corrida armamentista é de lascar. É só olhar para Paquistão x Índia, China x Taiwan, escudo anti-mísseis, EUA x Universo. Sem contar que é justamente a pauta ideológica do atual governo que conquistou vitórias importantes no âmbito da OMC e contribuiu para pôr em eviência os Brics.

Carol M. disse...

Meninos, eu sabia que ia dar nisso! Também não concordo com várias coisas nesse artigo, mas achei bem escrito e dá uma noção mais acadêmica do que o Brasil tem feito em termos de política externa.
Dia desses eu escrevo algo mais 'ao nosso gosto', I promise.

Beijocas pros dois.

Elton disse...

Carol, não tenho nenhum problema em debater textos acadêmicos ou com um conteúdo ideológico diferente do meu. Sinta-se à vontade para trazer idéias diferentes ao blog. Um confronto de idéias é sempre salutar.