quarta-feira, 14 de maio de 2008

...E segue a peleja


Mais do Tio Allan Sieber... é bem por aí...

Um conto pra esquentar

Em tempos de poucas postagens, vai aí um conto meu saído do forno. Não tenho a qualidade técnica da Carol ou do Ivan, muito menos a inventividade do Salvaterra, mas vou arriscar. Um breve conto de Horror pra vcs. Divirtam-se (ou não). Mais tarde tem quarta MeiaEntrada pra garotada.

Aquele que espera por ela

"Não somos, por acaso, as máquinas do prazer de Deus?"
Ray Brabury

Na primeira sala eu era o caco de um espelho cuidadosamente jogado no canto esquerdo. Você era o primeiro reflexo interessante que eu reproduzia e eu me sentia refazendo você. Quando você me viu, viu você e eu te vi de perto, quando de perto você me viu, se aproximando de mim, fazendo eu me aproximar um pouco mais de você. Você me pegou no chão e quando se tocava eu tocava você. Bastava apenas não se ver e ver que como você eu também te via enquanto mostrava você ao contrário. E você se viu exposta, invertida por mim. Creio que em uma questão de segundos, se ver tão exposta e ainda ao contrário pode tornar a admiração em repulsa mesmo que a curiosidade seja grande. Eu, na minha condição de caco de espelho tinha as minhas pontas mal aparadas e te cortei quando você se cortou. Nada mais natural ao me ver sangrar sangrando você se me largar e se afastar, eu me soltando e me afastando de você. A porta estava aberta e em poucos passos você estava na sala seguinte.
Lá eu me fiz um banco concentrado daquela matéria que é conhecida(se não me engano) como madeira e você era alguém com um dedo sangrando. Eu me oferecia gentil para que você se sentasse e talvez pensasse sobre o que realmente te apoiava. Você sentou-se e, com o dedo machucado na boca parecia efetivamente pensar, enquanto eu pensava no que você estaria pensando. Quando seu dedo parou de sangrar você me percebeu, e dessa vez em vez de refletir você, eu era o seu apoio. Você levantou-se e caminhou ao redor da sala, que eu esvaziara cuidadosamente para que nela fosse eu apenas o seu apoio, o banco de madeira. É possível que você não tenha se sentido confortável diante da minha solidez , por isso segui a porta e para a próxima sala.
Lá eu era mofo nas paredes e me espalhava em volta de você silenciosamente, mas não deixando de crescer e te evolver a distância (pelo menos nesta sala). Pela primeira vez você pareceu compreender o que eu era e falou comigo. Infelizmente disse não estar satisfeita , alegando que eu trazia em mim (nessa forma) uma idéia de antiguidade e de abandono ou destruição que não lhe agradava, eu na minha condição de mofo consequentemente devorando o novo que estava naquela sala. Queria te dizer que na verdade trazia a consequência do que é estar vivo, um presente em forma de ensinamento ( me fora ensinado que o presente mais valioso que existe é aquele que pode ser guardado exclusivamente na memória, e o que se guarda lá é que pode ser aprendido e ensinado posteriormente). Mas nada disse, pois na minha condição de mofo nada poderia mesmo dizer. Assim, dessa vez outra novidade: creio que a sua reação era a de irritação, e mesmo sabendo que um sentimento como esse dificilmente poderia derivar em uma forma de atenção positiva, já sabia que você tinha sentido alguma coisa por mim.
Quando a passos largos você se dirigiu a próxima sala, eu me fiz a sombra de lá. Tinha como intuito mostrar a você como a luz é de uma beleza ímpar quando vista através das sombras e como a presença de sombras também afasta a idéia de escuridão, pois as sombras se fazem justamente pela presença de luz. Eu sabia desde quando te refleti da luz que você tinha dentro de você, e como sombra sentia de forma poética (se é que consegui entender de forma completa o significado de uma poesia, das muitas que li) completando-a. Você, ao me ver como sombra demorou um pouco a me reconhecer e quando o fez brincou comigo, iluminando toda a sala, expondo justamente aquela luz que eu sabia que você tinha, sendo apenas você completa, insinuando que a sua luz era tal que poderia eliminar de forma sistemática qualquer sombra que pairasse dúvida sobre isso. Eu então me retirei, para que você fosse unicamente luz, e da sala seguinte pude ouvi-la rir e pular por alguns momentos até adentrar a próxima sala.
Lá eu fui afetado por você de forma diferente. Ao entrar sua luz antes de qualquer coisa me coloriu e eu era todas as cores daquela sala. E eu era tantas e tão vivas ao mesmo tempo que envolvi você, enquanto você se deixava envolver pelo turbilhão multicolor que a cercava. Julguei que o que vi em você naquele momento era o que é denominando de Felicidade e essa sua sensação me dava a capacidade de me multifacetar em cada vez mais cores de forma alternada e cada vez mais rápida, de certo modo talvez até sufocante, mas para mim definitivamente inebriante. O efeito disso em você pra mim foi inesperado, pois aparentemente assustada e com um líquido escorrendo dos olhos (seriam essas as tais “lágrimas” que tanto me causavam curiosidade?) partiu rapidamente para a sala seguinte.
Nesta sala eu me fiz como alguém da sua espécie, um homem cuidadosamente moldado, que a observava como quem observa sua relíquia mais preciosa. Dessa vez vi em você um sentimento que nunca antes havia concebido, mas que provavelmente era o que é definido como desespero. Você me tocou, e eu me senti tão eufórico quanto vi você na sala anterior. Mesmo enquanto você gritava de forma aterradora e, sobre mim me apertava e me tocava em movimentos rápidos e fortes a ponto de começar a desfigurar o que eu havia concebido como um rosto, senti justa e finalmente o que tanto buscava e até cheguei a ter dúvidas sobre a real existência: Prazer. Sim, estou convicto de que o que me percorreu naquele momento e fez eu simplesmente paralizar meus sentidos, com foco apenas no que ocorria em mim era o que é conhecido como prazer. Você, para meu deleite, passou bastante tempo nessa sala, tempo suficiente para destruir toda a minha forma humana. Quando eu estava totalmente deformado e ao mesmo tempo extasiado de um modo inigualável você deixou a sala, com o mesmo semblante de desespero que por ela havia entrado.
Na sala seguinte o que ouvi de você,mesmo tendo um conhecimento respeitável da sua forma de comunicação, foi quase totalmente incompreensível. Pude perceber que você falava muito e entre o que pude distinguir como palavras haviam sons, ora guturais, ora agudíssimos, de alta intensidade e longa duração, que estão além da minha compreensão. Dentre a palavras que entendi, ficou claro que você queria que eu saísse de perto de você, me retirasse da sala e de qualquer outro lugar onde você estivesse (lembro-me claramente da palavra “Prisioneira” e várias inflexões da mesma, mas seu significado é um mistério pra mim). Mesmo você se dirigindo a todos os lugares da sala enquanto falava, tenho dúvidas se você realmente sabia que eu estava lá te observando. Sei que, sedento de poder encontrar mais uma vez o prazer que havia obtido, achei mais prudente obedecer aos seus pedidos o mais rápida e eficientemente possível. Nesta sala afim de que você se sentisse mais tão assustada quanto parecia estar, me fiz todo o ar que a rodeava. Assim nessa condição, me retirei completamente, deixando você só e totalmente livre de qualquer ar, no estado mais silencioso que o vácuo pode proporcionar. Fui para a sala seguinte aguardando a sua chegada, dessa vez sem assumir ou me reagrupar atomicamente de forma nenhuma, sendo como eu sou naturalmente, na minha forma primária.
Há um longo tempo espero você nessa sala, mas parece que você se recusa a sair da sala anterior. Daqui apenas posso ver você deitada de bruços, imóvel desde quando eu me retirei.