Poderia ter sido no Copacabana Palace, na década de setenta, mas aconteceu distante das grandes metrópoles, num lugar com nome inspirado em um dos tigres asiáticos.
Fazia calor e ela estava sonolenta. A festa era linda. Ela estava linda, mas flanava solenemente feito um fantasma, com o coração nas mãos: - quer ver?
Ninguém notou, mas ela carregava uma vida inteira e uns quatorze meses de espera, pelo menos. O espumante fazia cócegas no nariz e experiências não tão antigas assim ocupavam um lugar à mesa. Dispensou a entrada.
Pessoas falavam excessivamente sobre passaportes, viagens, livros e manuais: se entreolhavam, mas eram incapazes de se enxergarem genuinamente. Havia muros em toda parte, altos e intransponíveis. Cercas de arame farpado delimitando territórios tão invisíveis quanto factíveis.
Dostoiévski estava sentado na mesa ao lado, apostando a vida no pano verde. Na mesa ao norte era possível avistar Balzac coçando sua barba. Ao sul, crianças sorriam e brincavam alheias às manifestações de hipocrisia: um dia seremos super heróis, pensavam. No oeste o sol não se poria como de costume e ao leste havia um universo de questões ansiosas por respostas.
Ela dançava como nunca. Flashes vinham de toda parte, mas ela se sentia em outra dimensão. Ele ao lado, tentando assimilar os últimos meses, checando o nó da gravata o tempo todo. Os olhos míopes não viam nada além das lentes cravadas na armação Benetton. A camisa de alfaiate asfixiando o peito; a vida inteira nas mãos: o que fazer? Perguntas, perguntas. Ele estava completamente alheio, talvez porque esquecera a memória junto com o celular novo em algum lugar do Leste europeu. Ela era querida, mas de que adiantava isto numa noite daquelas?
A lua baixa, as lembranças tirando-a pra dançar. Você é linda, nós a amamos, por que se permite sentir tanta dor? O sorriso mecânico e as palavras doces de sempre. Tinha interesse acadêmico por pessoas, o que mais poderia fazer? Dizer-lhes o quão superficiais eram? Vender-lhes auto-suficiência, erudição, os percalços que tivera na vida? Não. Sabia o que era e o que sentia. Aquelas pessoas nada podiam fazer por ela. Ela não queria vender nada para ninguém e tampouco isso era-lhe necessário.
Ele, contudo, tinha algo escondido em algum lugar e sequer sabia disso. Ela sim. Era um rapaz inseguro em busca de si: em que trilha mesmo me perdi? Em qual país irei finalmente me reencontrar? Acho que deixei minha dor sob a cama do último hotel. A Europa me espera. A loira eslovaca também.
Ela o via caminhando sobre pontes invisíveis. Sabia de antemão que ele iria cair cedo ou tarde. Sabia até que já estava quase em queda-livre, mas que jamais gritaria por socorro: era míope demais.
Ela o salvaria de bom grado. Acolheria em sua casa se batesse à porta. Diria o nome do Adorno que ele tanto queria saber, diria que Rilke e Machado lutaram consigo mesmos e por isso eram tão geniais. Leria Schumpeter só pra desconstruir a vida esquizofrênica que ele levava. Diria que cassetetes em Berlim não significam mais nada e que a França não é tão fantástica assim. Diria que as teorias de Marx revolucionaram o mundo, mas que ele era um fracassado na vida pessoal, maltratava a mulher e negligenciava os filhos. Releria Harvey pra dizer que a pós-modernidade não é tão pós-moderna assim e que o mundo se repete aqui e lá: as pessoas sempre se perdem nos caminhos que traçam pra elas. Diria que erudição é uma ferramenta muito útil quando se deixa os livros na estante e se atira no mundo pra ter suas próprias concepções. E também que B.B. King e Eric Clapton sempre serão a trilha sonora perfeita quando se viaja de carro por aí.
Mas ele era surdo, além de míope. Via nela uma mulher sem graça e sem mistério algum. E ele adorava mistério, sempre flertava com o impossível, com aquilo que jamais poderia ser. Afagava diariamente um passado incolor que lhe comprimia os pulmões. Sequer sabia quem era e onde deveria iniciar a busca. Romper com as tradições? Decepcionar os pais? Mudar de profissão? Publicar um romance?
Ela dançava. Dançou até os pés doerem. Queria contar-lhe aquilo tudo que ele jamais suspeitara, afinal ele não a conhecia nem um pouco apesar de supor que sim. Porém a lua estava baixa e ela sonolenta.
Por fim, desistiu de dizer o que realmente era e o porquê de estar tão bonita. Isso deixou de ser importante para ela, afinal sabia o que queria daquela noite: ele definitivamente não era o bastante pra ela, não naquele dia. Talvez dali outros quatorze meses.
Ele não tinha ouvidos. Ela não tinha mais vontade, não disponibilizava nada para ser sugado e o umbigo dele sempre falava alto demais. Ela desistiu. Deitou aos pés dele, dormiu tranqüila sobre as pernas cobertas pelo terno bem cortado. Acariciou-lhe as mãos, feliz por entender o que era e por saber o que queria dele. Ele jamais entenderia e ela sabia que, naquela noite de lua baixa, não poderia querer nada mais. Era só um menino assustado e ansioso por encontrar seu lugar no mundo. Ela era uma mulher cheia de angústias que tinha feito as pazes consigo mesma já há um tempo. Ele nada podia fazer para mudar isso.
O amava como nunca, mas compreendeu que ele precisava se encontrar e desembaçar certas lentes. Palavras já não seriam necessárias. A lua estava baixa e ela sonolenta. Dormiu quieta. Boa noite, meu bem, nos vemos amanhã.
*** "Just in time", NINA SIMONE.
5 comentários:
é...
não avisa não que posso te ler aqui tb...
nem gosto e vou ignorar que amei este texto de paixão.
=~
E ele passou pela vida como um poeta que nunca soube o que era amar.
Sem o gosto de uma lágrima sentida qualquer filosofia é nada.
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Emanuelle
Não acho que ele escreveria alguma coisa, nem mesmo uma quadra... Perdido como um menino frente a uma mulher.
A crônica é o único gênero literário produzido essencialmente para ser vinculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e pré-determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem.
Em regra geral, a crônica é um comentário leve e breve sobre algum fato do cotidiano. Algo para ser lido enquanto se toma o café da manhã, na feliz expressão de Fernando Sabino. O comentário pode ser poético ou irônico mas o seu motivo, na maioria dos casos, é o fato miúdo: a notícia em quem ninguém prestou atenção, o acontecimento insignificante, a cena corriqueira. Nessas trivialidades, o cronista surpreende a beleza, a comicidade, os aspectos singulares. O tom, como acentua Antonio Candido é o de "uma conversa aparentemente banal".
O próprio Fernando Sabino tem uma das melhores delimitações de crônica, dizendo que ela "busca o pitoresco ou o irrisório no cotidiano de cada um". Em outro momento, o autor de O homem nu voltou a teorizar sobre o gênero:
Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador.
A questão da linguagem
A mistura entre jornalismo e literatura leva o cronista a um freqüente impasse: para se constituir como texto artístico, o seu comentário sobre o cotidiano precisa apresentar uma linguagem que transcenda a da mera informação. Ou seja, precisa de uma linguagem menos denotativa e mais pessoal. Isso não significa elaboração muito sofisticada ou pretensiosa. Significa que o estilo deve dar a impressão de naturalidade e a língua escrita aproximar-se da fala.
Nem sempre o cronista atinge o duplo alvo: fazer literatura e expressar-se com simplicidade. Em função do grande público, é preciso buscar primeiramente a clareza e uma dimensão de oralidade na escrita. Daí porque a crônica seja considerada por muitos críticos um gênero menor: aquela vontade de forma que todo o grande artista possui termina subjugada pela necessidade de ser acessível a todos.
Além disso, o cronista tem prazos para entregar seu material, não podendo nunca deixar seu texto amadurecer. Mesmo assim, algum desses prosadores, que escrevem sob pressão de horários rígidos, são capazes de alcançar uma linguagem literária de singular beleza. Observe-se o fragmento de uma crônica de Rubem Braga:
"Foi em sonho que revi longamente a amada; sentada numa velha canoa, na praia, ela me sorria com afeto. Com sincero afeto – pois foi assim que ela me dedicou aquela fotografia com sua letra suave de ginasiana. (...)
Foi em sonho que revi a longamente amada. Havia praia, uma lembrança de chuva na praia, outras lembranças: água em gotas redondas, pingos d´água na sua pele de um moreno suave, o gosto de sua pele beijada devagar... Ou não será gosto, talvez a sensação diferente que dá em nossa boca uma pele de outra, esta mais seca e mais quente, aquele úmida e mansa. Mas de repente é apenas essa ginasiana de pernas ágeis que vem nos trazer o retrato com sua dedicatória de sincero afeto; essa que ficou para sempre impossível sem, entretanto, nos magoar, sombra suave entre morros".
Isso é para alguns que duvidavam do fato desse texto ser mesmo uma crônica. Acho que ficou claro agora, né?
Beijos!
o vinicius disse, eu vim conferir e babei.
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