domingo, 9 de setembro de 2007

Domingo é dia da feira: posto eu posta você

Mando um conto que saiu no Conchavo, alguns já conhecem...Tem Zona Sul, tem poesia.
(Por Ivan Antunes)
Guacuri
Guacuri à noite é Gacu-morte. A região apelidada por alguns como Morro que morreu-mais-um por outros como Jardim bala-perdida e ainda Vila que queimaram-dois-busões, situa-se na zona sul de São Paulo, nas proximidades de Santo Amaro. Os moradores de lá são pessoas trabalhadoras que vão e vem e vão e vem todos os dias de Pinheiros através do azul-e-branco ônibus lata de sardinha “Rio Pequeno/ Pinheiros – Vila Guacuri”.
Noite passada resolvi sentar-me no fundo do ônibus, e fazer cara de mal...Os olhos claros não enganam a descendência alemã, entretanto...Não botava medo em ninguém, mas a intenção não era essa...Queria apenas realizar a leitura do Vermelho e o Negro de Stendhal em meio as trepidações causadas pelo asfalto irregular do percurso – Largo da Batata – Avenida Berrini.
Já era quase meia noite, o ônibus dessa forma circulava pela Avenida Berrini a toda velocidade e sorrateiramente numa das paradas do percurso um casal sem condições financeiras para pagar a tarifa requisita ao cobrador a passagem por debaixo da catraca, este permite. Um terceiro cidadão suposto amigo do casal solicita ao cobrador realizar o mesmo ato que os primeiros, este permite.
Eu lendo Stendhal. Eu tentando ler Stendhal. Eu lendo Stendhal. Eu tentando segurar o livro com a trepidação e agora barulho que o trio provocava, afinal sentaram-se ao meu lado, e achavam-se os comandantes do azul-e-branco, achavam-se os comandantes das suas vidas e das vidas dos outros passageiros. Achavam-se importantes naquele momento davam atenção a eles, por terem passado por debaixo da catraca e por falarem alto interagindo com minha leitura e atrapalhando o sono de outros passageiros.
Em primeiro momento pensei em chamá-los para ler Stendhal comigo, seria uma oportunidade boa para estes conhecerem coisas novas e pra mim ter com quem discutir a s primeiras páginas do livro que começava a ler. Logo desisti. Olhei no relógio do aparelho celular por duas vezes, e a conversa continuava sem parada. As linhas do livro misturavam-se com a conversa, a conversa passava ser mais interessante que o livro. Comecei a virar a cabeça e voltar para o livro. Fingia que não prestava atenção nem no livro e nem na conversa. Começava a me desconcentrar. Achava estranho aquele papo e aquela forma como um tratava o outro. Eram amigos e ao mesmo tempo os três disputavam algo que não sabia ao certo o que poderia ser. Imaginei que a disputa pudesse ser pela mulher que estava por ali, mas não era. O rapaz que primeiro entrou com a mulher, formando o suposto casal com ela,agora a tratava de forma estranha. Agredia esta verbalmente. Ela o repudiava. O outro homem apenas balançava a cabeça. Eu observava. A moça negra dos lábios carnudos levantava e pedia a garrafa da cachaça para seu suposto parceiro e agressor. Este tratava-a como um cão insultava-a e mandava ficar caladinha no canto dela. Aquela conversa começava a me incomodar, embora permanecesse atento as linhas de Stendhal, para não me envolver no papo e falar alguma coisa atravessada para o rapaz da turma que estava ao meu lado insultando a moça. Me controlava, ele não. Ela não se controlava. O outro rapaz não se controlou, então disse aos outros dois:
- Ei vejam só a tatuagem que fiz nas costas!
O outro disse:
- Quero só vê!
O primeiro rapaz levantou metade da camisa e disse:
- Vê aí o mané, tá sangrando ainda e tá com o plástico que acabei de fazer, ó aí ...ó ...ó aí..ó..
O outro que antes agredia verbalmente a moça negra muda o foco de sua agressão e imediatamente diz:
- Virô bandido é? Desenha um diabo nas costas e ainda acha que é de deus?
O rapaz da tatuagem injuriou-se com o comentário do outro. A mulher insultada parecia que não estava mais por ali. Eu parecia que não lia mais Stendhal o ônibus inteiro parecia que não dormia mais aquela hora da noite.
O tatuado levantara-se para dar um sopapo no outro, o outro revidara os dois caem sobre meu livro do Stendhal. Eu me enervo, o ônibus se enerva. A turma do deixa-disso entra em ação tentando socar o primeiro que visse. Eu subo no banco e ameaço ou jogar o Stendhal pela janela, ou me jogar pela janela caso saísse tiro, ou jogar algum deles pela janela, afinal um ringue de boxe havia se estabelecido ali naquele momento na parte traseira do ônibus Guacuri naquelas horas da noite.
Imediatamente o cobrador que naquelas alturas cochilava acordou. O Motorista pisou no freio e gritou para que todos descessem. O cobrador veio apartar a briga. Eu empurrei-os de lado mais preocupado em afastar-me do que apartar a briga. Naquele instante veio em minha cabeça aquela música do Raul “Cowboy fora-da-lei” - “Eu não sou besta pra tirar onda de herói sou vacinado sou cowboy”, preferi calar-me. Queria apenas ler Stendhal e chegar em casa salvo. O ônibus inteiro só queria dormir e chegar em casa em paz. Lembrava-me de outras brigas que já havia apartado e que quase me dera mal.
O motorista urrava:
- Vai descê? Ou vai calá a boca?
Pararam. Olharam. Sentaram. Arrumaram os cabelos. Respiraram. Se enfrentaram com olhares e um deles ordenou ao motorista:
- Pode seguí que nóis vai até o fim!
O motorista meteu pé na tábua e seguiu viagem rumo ao Morro do morreu-mais-um. Na verdade o trio desceu no ponto mais próximo do beco mais escuro que encontrava-se na Avenida Berrini. Não foram até o final.
Pensando nas possibilidades de um tiro ter saído ali resolvi mudar de lugar logo que a briga havia iniciado e puxei uma conversar com outros passageiros sobre o ocorrido, expliquei que a briga não era comigo, expliquei que não era assalto. Explique às pessoas que era uma necessidade de sentirem-se vivos. Uma necessidade de afirmarem-se em uma sociedade que não se importa com quem não tem um puto no bolso. Brigaram. Lutaram. De forma errada. Entre si. A briga é outra. A cachaça auxiliou na alteração de percepções de um deles. Acontece. Acontece. Acontece.
Contei outras coisas mais aos passageiros, fechei meu livro de Stendhal, encostei a cabeça no vidro e fui até meu destino na Avenida Interlagos observando a paisagem noturna que passava lá fora.

3 comentários:

Anônimo disse...

já está sabido o motivo da discussão destes pobres: são as cantadas do post abaixo. o cara vilãozinho foi cantado pela bêbada E também pelo bêbado e depois deixaram de dar em cima. kkkk.
o romance é um espelho ao lado do viajante, refletindo a estrada, já dirá Stendhal, e esse ônibus é aquela parte córrego Paulistano com curvas perigosas e vermelhos e negros estatelados.

Tio Vinix disse...

muito bom ivan... sempre sabendo observar

Julia disse...

Muito bom seu texto, Ivan, salvos alguns errinhos de português... Mas aí é porque eu sou cricri e muito ortodoxa com gramática e ortografia, pontuação...