sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Mais literatura africana - Angola (I)

Aproveitando que o Ivan teceu alguns comentários sobre Mia Couto, emendo com um texto sobre José Luandino Vieira. É na verdade a resposta de uma das questões da prova de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa I, disciplina que cursei o último semestre na Letras, e que me surpreendeu muito, pela riqueza e pelo conteúdo. Hoje sou um pouco menos analfabeto em relação à literatura da África, continente que, infelizmente, ainda nos parece tão distante, apesar de nós tão íntimo.

3ª Questão – Como os contos de Luandino Vieira “O fato completo de Lucas Matesso” e “A história do ovo e da galinha” engendram a relação nação e utopia?

Membro do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), José Luandino Vieira (1935) transmitiu à sua obra literária boa parte das preocupações políticas que o movimento defrontou. Com o predomínio da estética neo-realista (ou real-socialista), diversas obras foram produzidas com o intuito de denunciar a exploração imperialista que os portugueses impunham sobre Angola, o processo de marginalização e alienação vivido pela população negra e a anomia social verificada num cotidiano marcado pelo preconceito e superexploração do trabalho do negro.
Dentro desse contexto, José Luandino Vieira, e diversos outros autores, buscaram afirmar a identidade angolana em suas tradições africanas, na esteira do movimento da “negritude”. Valendo-se da estética neo-realista, as obras literárias vinham carregadas de simbolismo político em suas personagens. O processo metonímico, em que a parte representa o todo, teve aqui solo fértil e prosperou. Não eram simplesmente personagens que habitavam Angola, num processo de individualização das características próprias a cada um, mas classes que representavam os dominadores e os dominados, os que se vendiam aos poderosos e os que lhes faziam frente.
Se, com isso, tem-se uma poderosa arma de propaganda, nem sempre se tem literatura de qualidade. O excesso de tipificação a que submeteram as personagens burguesas e proletárias, brancas e negras, homens e mulheres, velhos e crianças, muitas vezes recaiu no caricato e superficial. Felizmente não é esse o caso de Luandino.
Com efeito, como não poderia deixar de passar com um ativista engajado na luta de independência de Angola, os temas nação e utopia lhe são caros e fundamentais.
Em “O fato completo de Lucas Matesso”, acompanhamos toda a tortura que oficiais da repressão infligem sobre Lucas, que, preso e torturado, não consegue entender aquela história de fato completo de que os guardas tanto falavam. Ocorre que um dos policias ouvira a mulher de Lucas falar-lhe que traria, na próxima visita, um fato completo, e logo se instalou a dúvida no aparelho repressivo: estaria naquela vestimenta, o fato, o que tanto procuravam arrancar de Lucas Matesso?
Três meses de castigos, fome, pancadas e conversas sofreu, mas não cantou. O nome de Domingos não foi delatado aos guardas prisionais que fizeram de tudo para tê-lo arrancado de sua boca, agora, no fim do conto, gargalhando por conta da ignorância repressiva, incapaz de saber que o fato completo nada mais é do que um prato típico de Luanda, que a mulher de Lucas Matesso ficara de lhe enviar.
“A gargalhada grande como as chuvas de abril engrossando mais os rios cantou na garganta dele, encheu a cela de alegria, fugiu no postigo, pelos arames da rede, entrou maluca nos gabinetes onde os irmãos agüentavam as pancadas e torturas, calou os pássaros no jardim e, com um salto, voou por cima dos muros da prisão, correndo livre pelas areias de todos os musseques da nossa terra de Luanda.”
Pois é justamente em um musseque de Luanda que se passa uma história emblemática do futuro projetado de Angola na visão de Luandino, representado na “estória da galinha e do ovo”.
O conto narra a disputa travada entre duas vizinhas quanto à posse de um ovo. Cabíri, galinha de Zefa, botou o ovo no quintal de Bina, originando a contenda, que, iniciada, chama a atenção dos companheiros e conhecidos, que vão ao local para auxiliar na resolução do conflito. Acorrem a vavó Babeka, mais velha e dotada de sabedoria, o sacristão, o escriturário e o dono da venda, sem que nenhum deles consiga pôr um ponto final na questão. Quem encerra o caso é a polícia, que, além de chegar de modo truculento, pretende levar a galinha para fazer um churrasco. Dois meninos a salvam. Conhecedores da linguagem dos animais, que um dos mais velhos lhes havia ensinado, imitam o canto de um galo, o que põe a ave em alvoroço e lhe dá forças para desvencilhando-se do policial que a segurava, partindo em liberdade. A mulher dona da galinha dá o ovo à outra, que estava grávida, encerrando a disputa.
Percebemos tanto num conto como no outro um aspecto metonímico muitíssimo bem elaborado, o que dá aos personagens uma qualidade estética muito além da simplificação promovida por alguns adeptos do neo-realismo.
Em “O fato completo de Lucas Matesso” podemos ver a geração de homens maduros que se encontra cercada pela repressão portuguesa, depauperada, marginalizada, obrigada a habitar os musseques, sem emprego mas com disposição para o confronto com o aparato repressivo. São os guerrilheiros do MPLA, os sindicalistas, intelectuais e ativistas que lutam pela independência de Angola. Eles darão suas vidas se for preciso para que o futuro do país seja diferente. E o futuro do país são as crianças de “A história do ovo e da galinha.” Elas, mesmo que sintam a ausência dos pais encarcerados, têm neles a referência de bravura necessária para os momentos de confronto com a repressão. Além disso, estão atentas aos ensinamentos dos mais velhos, não descuidam das tradições africanas, pois são elas, as tradições, que lhes dão identidade e sabedoria para a vida. Vida nova representada no ovo, ou seja, é a própria Angola que está em questão. Nas figuras do sacristão, do escriturário e do dono da venda podemos ver os três principais poderes de Angola: a Igreja, o Estado e a burguesia, incapazes de responder aos problemas da população pobre. Mas no futuro de Angola eles não cabem. Apenas os humilhados e ofendidos dos musseques desfrutarão de uma nação sem religião, Estado ou classe social: uma nação comunista.

5 comentários:

Anônimo disse...

Esse espaço é muito legal. Precisamos ler com calma.

Anônimo disse...

FRELIMO neles , a força libertária pela libertação de moçambique yeah yeah...
lembrei por causa da MPLA

eltão, arrepiou pusquê nas próximas semanas vc que arrepia ae e eu to de férias de havaianas.

Anônimo disse...

força não, frente...

Tio Vinix disse...

muito bom

Anônimo disse...

Vim parar neste blog devido a um trabalho que tenho para apresentar sobre "O fato completo de Lucas Matesso", na Universidade Católica de Santos. Gostaria de deixar clara a minha satisfação por ter encontrado um espaço tão interessante de informação e discussões como este. Abraço a todos!
Marco Aurelio.