O fim do século XIX no Brasil é marcado por dois grandes acontecimentos: a abolição da escravatura e a proclamação da república. Esses dois eventos estão intimamente relacionados em diversos pontos ideológicos, e no que diz respeito a visão da sociedade branca sobre o negro, as relações se estreitam da mesma forma. Conforme podemos observar, os negros apresentaram diversas formas de resistência à escravidão que lhes foi imposta, sendo inverídico dizer que foram elementos passivos na construção do processo abolicionista. Em meio a crescentes revoltas e fugas de escravos, a sociedade branca letrada procurava meios de manter a ordem frente a nova conjuntura social que se formava. A escravidão, vista como característica de atraso perante as nações internacionais, deveria deixar de existir através do movimento abolicionista, coordenado por brancos que estabeleceriam a ordenação da sociedade sem que o elemento negro interferisse de alguma forma. Com o fim da escravidão no Brasil, surge a dúvida do que fazer com o contingente de negros que existia. Várias idéias surgem em concomitância com as teorias científicas que ganhavam destaques pelo mundo. O positivismo dava força às ciências naturais como forma de organização social, permitindo que teses como o darwinismo adquirissem destaques na mentalidade da época. O negro, visto como elemento desordeiro, ladino e libidinoso, deveria ser contido de alguma outra forma que não a escravidão. Com o desenvolvimento do país como república, dever-se-ia buscar meios de coerção da sociedade negra, impedindo que as características “naturais” de atraso dessa população contaminasse a trajetória do país como potência. Num primeiro momento, os jornais da época retratavam diariamente a violência que circundava a vida dos negros, transmitindo a idéia de povo desorganizado, perigoso e atrasado frente à civilização branca. O texto de Gislene Aparecida dos Santos, intitulado “A Invenção do ‘ser negro’”, constrói bem a forma como os periódicos retratam o negro. Constata-se que após certo tempo, os jornais cessam de reproduzir o discurso do atraso da população de cor. “O negro vai paulatinamente sumindo de suas páginas, como se a paz entre as raças houvesse sido alcançada. (...) Já havia uma imagem naturalizada que tornava desnecessário o uso de mais palavras para definir o ser negro” (SANTOS, 2005, p. 132). Essa “paz entre as raças” de que a autora fala, configura-se na intenção de manter a ordem e visar o progresso para a nação brasileira. Suprimido o conflito após a configuração de uma hegemonia ideológica branca, começa a elaboração do discurso sobre a miscigenação presente na constituição do ser brasileiro. Destacam-se dois desses discursos que, visando um maior controle social, conseguem atingir grande exponencial na sociedade da época. O primeiro deles, identificado na figura de Nina Rodrigues, falava da diferença natural entre as diversas raças que compunham o brasileiro. O negro seria pertencente a uma raça primitiva, apegado às necessidades naturais, aos instintos que o dominariam e o levariam inconscientemente a cometer ações consideradas criminosas pelas raças superiores. Neste sentido, o negro (e também o índio), não poderia ser julgado e condenado pelas mesmas leis que seriam aplicadas aos brancos, pois cometer crimes é algo natural de sua índole. “Tanto os negros quanto os índios têm direito a uma responsabilidade atenuada no pensamento liberal. A relativização da responsabilidade penal significa, em outros termos, a relativização do direito à cidadania, à liberdade, à humanidade, e a conclusão, enfim, de que tanto os índios quanto os negros não podem ser considerados plenamente humanos” (SANTOS, 2005, p. 144-145). Essa desumanização do negro acabaria por gerar a identificação do atraso do país como uma conseqüência do povo que o compunha. A idéia transmitida por Nina Rodrigues é de que o mestiço seria uma degenerescência da raça branca, que herda a índole preguiçosa e atrasada do africano, refletindo esse atraso no desenvolvimento do Brasil. Assim, o único meio de amenizar essa deficiência seria isolar os negros dos brancos, dividindo as raças por meio da regionalização do país. Isso pode ser observado nos diversos movimentos revoltosos que eclodiram nessa época e que foram suprimidos pelo governo. Os presos das revoltas da Vacina e da Chibata eram transferidos para o Acre, ou internados em hospícios, instituição essa que se proliferou largamente no início do século XX. Outro discurso de grande influência na sociedade brasileira foi o de Gilberto Freyre. Divergindo de Nina Rodrigues no que diz respeito a visão puramente biológica das raças, Freyre analisa a miscigenação sob aspectos de natureza social, vendo-a como algo benéfico, “um corretor das distâncias sociais e do profundo hiato cultural entre o branco e o indígena, entre o senhor e o escravo ou liberto, entre o civilizado e o bárbaro, entre a casa-grande e a senzala”(SANTOS, 2005, p.150). O negro continua sendo inferior ao branco, emprestando somente suas características mais “interessantes” à formação de um ser aperfeiçoado, que geraria uma sociedade mais democrática em termos de raças, visto ser fruto de uma mistura. “O negro torna-se parceiro natural para a união pelo sexo e pelo trabalho. A díade senhor-escravo parece ser a representação do duplo perfeito, indissociável. O senhor representando a força, a virilidade, a brancura, a inteligência, o engenho, a crueldade sádica; e o escravo, a doçura, a sensualidade, o negror, a esperteza, a passividade masoquista” (SANTOS, 2005, p.154). A permanência das idéias de Gilberto Freyre pode ser percebida até hoje em nossa sociedade. O sentimento de falsa democracia racial constantemente tem sido revisto por órgãos e mídias para que o discurso de uma “igualdade” encobridora do racismo não se imponha como ocorrido anteriormente. O sentimento paternalista, do branco iluminador do negro passivo, ainda é encontrado em propagandas, livros e outros meios de comunicação de maneira maquiada, revelando um Brasil carnavalesco, convidativo, com ginga “futebolesca”, em que o negro atrai o turista para o país, mas não ocupa cargos profissionais, nem participa de maneira eqüitativa nos veículos de comunicação.
quinta-feira, 3 de janeiro de 2008
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