Sou um homem institucionalizado. Há 29 anos peço permissão para me retirar da mesa após as refeições. Tenho ponteiros tatuados no pulso esquerdo e um cartão de ponto incrustado no peito. Homens institucionalizados têm a alma vestida pelo medo. E por isso eu nada faço.Eu costumava ter brio. Ocupava-me da vida; disso que chamam de vida. Eu era feliz. Mas desde aquela noite chuvosa só sei me ocupar da morte. Naquela ocasião eu encontrei essa moça na banca de flores. Estávamos apressados. Deve ter sido por causa das bodas da avó, porque ela nunca passava por aquela rua. Comprou gardênias. Eu, orquídeas para minha mãe: o mesmo presente de aniversário de todos os anos.Mulher gorda e falastrona, a dona da banca nos deixou a sós e foi trocar umas notas. O inferno começou bem ali.Alguns de vocês podem dizer que se trata do destino, afinal. Não sei ao certo. Sei que ele sempre se disfarça de personagens insólitas, como uma florista, um engraxate, um taxista. Salta da contramão bem na nossa frente, alheio aos danos que causa: o destino não é uma personagem que aperta a campainha trazendo um pedaço de bolo e um sorriso de boas-vindas. Há que se ir ao encontro dele e, portanto, a culpa deve ter sido minha.Mas sou um homem tão institucionalizado! Sou gentil, ajudo moças a segurarem pacotes enquanto abrem a carteira. Obrigado, por favor, bom dia, boa tarde, boa noite. Homens assim não são culpados por nada. Nunca. Aquela maldita moça, ela sim era a responsável. Despertou-me a coragem, sabem? Lançou-me num sofrido longe e agora estou aqui, esperando que ela traga notícias sobre a minha morte. E já é a terceira vez nessa semana, a terceira. Eu já lhes disse isso?Quando ela chegar, se chegar, vai derramar aquelas lavas todas pela rua e eu não saberei o que dizer e, mesmo se o soubesse, diria muito menos do que gostaria. Sou assim, covarde. E ela é um labirinto e uma noite a um só tempo.
Novo trecho d 'O avesso de Pandora, meu primeiro romance.
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